domingo, 6 de janeiro de 2013

Niagara fall.







Andrea Smith e Jason Watson. Niagara Falls, 14 de Agosto de 2011.
 
 
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Creio que é de Saramago uma definição da morte que dizia mais ou menos isto, cruamente: «estás vivo e a seguir não estás». Ao contrário, o gato de Schrödinger consegue estar vivo e morto ao mesmo tempo. Mas nós não somos gatos, muito menos gatos quânticos, pelo que se cairmos do alto a morte é certa, ou quase certa. Vem esta conversa despropositada a propósito de uma imagem que Raymond Frenken utilizou na abertura de um belíssimo ensaio sobre as Cataratas do Niagara: «Pictures from the Brink of Love and Death. Niagara Falls». O texto surgiu num livro recente, fascinante: Objects in Mirror. The Imagination of the American Landscape. Para os amantes de «Americana» – atenção, José Navarro, isto é para ti! –, o livrinho, profusamente ilustrado, tem um pouco de tudo: Grand Canyon, Yosemite, Easy Rider, bisontes, Niagara Falls. Estão lá vários lugares ou ícones que construíram a imagem da América e a projectaram no mundo, que fizeram o Irresistible Empire de que fala, noutro belo livro,Victoria de Grazia.  
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Andrea Smith e Jason Watson. Ontário, 16 de Agosto de 2011.
 
 

Regressemos à imagem de Niagara Falls. Mostra, em primeiro plano, um casal abraçado, na encenação clássica da felicidade a dois: Andrea Smith e Jason Watson. Foi captada em Agosto de 2011 pelo filho de ambos, Jared. Uma fotografia familiar, do mais banal que se pode imaginar, com a mãe no limiar da obesidade e o pai envergando uma t-shirtdo Batman. Um pouco atrás, vê-se uma mulher magra, envergando um pólo vermelho. De pé, no parapeito, acima dos outros, contemplando as quedas de água. Michael Conner, de Maryland, um visitante habitual de Niagara Falls, viu-a subir o parapeito e ultrapassar a barreira de segurança. Ela e a amiga viam as cataratas, em Horseshoe Falls, e tiravam fotografias uma à outra, como vulgares turistas. Numa fracção de segundo, Michael Conner ainda pensou avisá-la: desde miúdo que ia ali, muitas vezes tinha chamado a atenção de vários turistas mais afoitos – ou menos conscientes. Pensou alertar a rapariga, mas, desta vez, ficou calado. Instantes depois, a mulher de vermelho desaparecia no vazio. Era um Domingo, a meio de Agosto, 14 de Agosto de 2011. A rapariga, Ayano Tokumasu, de 20 anos, decidira visitar as Cataratas com uma amiga. Estava no Canadá há poucas semanas, para estudar Inglês. No dia seguinte, foi descoberto um cadáver não-identificado, mas era de um homem. O corpo de Ayano apareceria quatro dias depois, confirmou a polícia canadiana. A seguir à Golden Gate, de São Francisco (revejam Vertigo!), as Cataratas do Niagara são o local dos Estados Unidos onde se regista o maior número de suicídios. Segundo as estatísticas, 20 a 25 pessoas por ano lançam-se da Rainbow Bridge. Mas, curiosamente, são raras as mortes acidentais. De 1905 até hoje, apenas sete pessoas morreram nas Cataratas do Niagara devido a quedas involuntárias. No dia seguinte à notícia do desaparecimento da estudante japonesa, quando o corpo ainda não havia sido descoberto, Andrea Smith e Jason Watson viram as fotografias que o seu filho tirara. Perceberam que, muito provavelmente, aquela era a rapariga que desaparecera no som e na fúria de Horseshoe Falls. Recordaram-se, então, que na altura lhes acorreu ao espírito o risco que aquela mulher corria e, ao observarem a imagem, carregam consigo a culpa de não terem evitado a morte. «E agora temos esta fotografia dela», disse Andrea Smith (ver aqui). Quer Michael Conner, quer o casal fotografado lamentam não ter feito mais para salvar uma vida e ambos recordam que, num instante preciso, pensaram no perigo. A fotografia de Andrea e Jason, que deveria servir como lembrança de um momento bom, ficou para sempre maculada pela presença da estudante suicida. Ayano Tokumasu não quis, certamente, suscitar a culpa de Michael Conner ou do casal Andrea e Jason. Muito menos pretendeu manchar a imagem de felicidade que o filho dos Watson captara. Não foi por sua vontade que apareceu na fotografia, ainda que obviamente soubesse que estavam pessoas em seu redor e que essas pessoas, como é praxe obrigatória nos locais turísticos, se fotografavam umas às outras. Se não tivesse morrido, a sua presença naquela imagem seria fortuita e banal. Agora, só porque se largou no vazio segundos depois, converteu-se num fantasma que a máquina conseguiu capturar. Ali, onde a vemos, Ayano Tokumasu está viva, não passa de uma vulgar turista, igual a milhões. Mas, ao sabermos que se suicidou, a sua presença adquire outro sentido para quem a observa ali. Convoca a presença fria da morte, que é incorporada na imagem apenas porque sabemos o que aconteceu depois. Se tivesse morrido no dia seguinte  – num desastre de viação, por exemplo – nada disto teria este significado. Mas a proximidade à morte – e à morte voluntária, note-se – é de tal forma intensa que quase somos tentados a pensar que aquela é a imagem de um cadáver iminente. Há muitos anos, tentaram captar imagens de fantasmas ou seres invisíveis, que só o dispositivo fotográfico permitiria desvendar. Em Fotografia e Verdade, Margarida Medeiros fala-nos em profundidade da optofotografia, da fotografia espírita, da fotografia de fluidos. Aqui, é diferente. No momento da captação da imagem, Ayano Tokumatsu estava viva; mas, segundos depois, precipitar-se-ia na grande queda. Quando a vemos na imagem, está lá, viva, mas no momento em que olhamos para a imagem, em que a observamos, já não está cá, entre nós. Viva e não-viva, como o gato de Schrödinger. E, ao atirar-se para as águas, aquela mulher não ia só. Na sua página do Facebook, aqui, muitos amigos recordam-na. E consigo levou um pouco da felicidade de Andrea Smith e Jason Watson; paradoxalmente, porque estes encenaram uma felicidade em que a sua infelicidade também estava presente, mesmo que de forma involuntária e casual. Por mais solitária que seja a opção de morrer, nunca partimos sós quando decidimos fazê-lo.
 
 
António Araújo
 
 
 
 
 
Ayano Tokumasu, fotografia no Facebook, aqui
 
 
 
 
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Excelente texto. Mas o que o leva a dizer que foi um suicídio? Tudo leva a crer que foi, de facto, um acidente (ainda que estes sejam extremamente raros).

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    1. Obrigado, Ana, pelo seu comentário. Agradeço o elogio (imerecido) ao texto mas, acima de tudo, ter questionado o facto de se ter tratado de um suicídio. É a hipótese mais provável, em que Raymond Frenken se baseia no seu ensaio. Mas deve notar-se que, segundo o próprio Frenken, não há certeza sequer de a rapariga na imagem ser Ayano Tokumasu. Tudo indicia que sim, mas não há certezas absolutas quer sobre a identidade, quer sobre o suicídio. Pelo menos, foi o que apurei na imprensa disponível online que pude consultar. Aconselho vivamente a leitura do ensaio de Frenken, que, no início, fala abundantemente dos suicídios em Niagara Falls.
      Cordialmente,
      António Araújo

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